Cidades

Do jeans ao funk: o fenômeno da cultura americanizada

Você já se perguntou por que tanto do que consumimos vem dos Estados Unidos? A cultura americanizada é complexa, e aqui explicaremos

Por Ana Beatriz Morrone, Ana Carolina Lamussi, Clara Spechotto, Estela dos Santos, Giovanna Ragano, Glícia Ferreira e Marcela Abreu

Ei, você aí! Isso, você mesmo! Posso te perguntar uma coisa? Já reparou que nossos hábitos são provenientes de uma cultura americanizada? Não? Então vou te mostrar. Da lista a seguir, o que você já ouviu falar ou tem em casa?

Bonecas Barbie
Netflix
Hip Hop

Se você respondeu que conhece pelo menos um desses exemplos, então, realmente os Estados Unidos estão inseridos na sua rotina mais do que você imagina, pois essas invenções norte-americanas se tornaram muito famosas e populares no mundo todo. Quer aprender mais sobre isso? Então vamos voltar no tempo por um instante… 

A imagem mostra um manequim cercado de elementos que representam a cultura americanizada, como a estátua da liberdade e a bandeira norte-americana.
Manequim com ornamentos representando a cultura americanizada | Reprodução: Unsplash

“O projeto econômico norte-americano de expandir sua dominação pelo mundo vai buscar espaço no Leste Europeu, na Ásia, em um processo chamado de ocidentalização. Então essa construção é gradativa, mas teve um ponto que foi a Guerra Fria”, explica o professor de história Fábio Serra. Após a Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos e a então União Soviética iniciaram um conflito político-ideológico que se estendeu até 1991. Nesse período, os norte-americanos partiram para espalhar suas ideias como uma maneira de convencer o mundo de que o capitalismo era melhor do que o socialismo. Embora vestígios desse processo já eram visíveis desde a Doutrina Monroe (ou América para os americanos), nos anos 1920, mas foi apenas com a Guerra Fria que o domínio cultural norte-americano passou a estar presente de forma massiva. 

Países periféricos, incluindo o Brasil, entraram no radar dos EUA de diversas formas nessa época. “Esses elementos vieram para nós através do cinema, das figuras da música”, afirma o professor de história. Era preciso criar símbolos de uma América próspera, moderna e capitalista. Marlon Brando e Elvis Presley, citados por Fábio Serra, servem de exemplo. “E que imagem é essa? A de modernidade, de algo que rompe com aqueles limites tradicionais e que oferece algo muito bom e diferente daquilo que nós tínhamos”, diz. 

O brasileiro sabe que parte dos produtos que consome não são nacionais, ou, se forem, são baseados em mercadorias estrangeiras. E há também a questão da diversidade regional, onde alguns locais têm mais dificuldade de acesso a bens importados. Como consequência, a cultura americanizada chega de forma alternativa para cada pessoa, que tem suas próprias interpretações a respeito. Um exemplo são as calças da marca multinacional Levi’s. No Brasil, além dos produtos originais, “made in USA”, existem as adaptações feitas por outras marcas nacionais, que sabem as necessidades de seu público-alvo. Assim, elas podem manter o modelo semelhante, porém, mudam o tecido e o corte, adaptando-os ao povo brasileiro e seus gostos.

Mas a subordinação é ruim? 

Mesmo reconhecendo que a subordinação ocorre, não é possível afirmar que ela é ruim, pois é esse contato com culturas distintas que formou a identidade brasileira: “Se nós pensássemos em uma sociedade restrita, que não tivesse contato com nenhum outro povo, nós seríamos extremamente tradicionais, então, algumas pessoas podem ver isso como algo positivo”, afirma o professor Fábio Serra. Assim, temos influências africanas, europeias, norte-americanas e muito outras, que nos aproximam do resto do mundo por intermédio da globalização. 

Também é importante entender que os EUA conseguiram essa dominação no país, porque as condições na época eram favoráveis. Mas isso não significa que, caso nada disso tivesse ocorrido, o Brasil não teria sido dominado por nenhuma outra cultura. Pelo contrário, a Europa também participava desse processo.

Para além das telonas

No cinema se vê a influência dos Estados Unidos como um dos protagonistas da cultura americanizada. O professor e crítico de cinema Philippe Leão explica que esse país construiu um aparato econômico, bélico e, sobretudo, cultural ao longo de sua história. O resultado é que esse processo se torna naturalizado principalmente em nações como o Brasil, que possui raízes coloniais tanto diversas quanto danosas persistentes até hoje. “Nossa balança cultural é devastadora, ou seja, nós importamos mais do que exportamos cultura. E o perigo é justamente, no estrangeirismo, acabar perdendo a nossa própria identidade, a identidade na qual vivemos”, afirma o crítico.

Uma pesquisa realizada no fim do ano passado pela Ancine (Agência Nacional do Cinema) mostra como a maior parte do público provém de filmes do exterior. A tendência do espectador brasileiro nos cinemas ao longo do ano de 2020 voltou-se majoritariamente para filmes estrangeiros com um marco de 78%, enquanto a produção nacional atingiu apenas 22% do público.

Metade desses espectadores do cinema tem por volta de 14 a 24 anos. Portanto, o maior contato que esse grupo tem com a arte e o entretenimento é justamente por meio da cultura americana – ou brasileira americanizada. “Nossos jovens estão entregues ao estrangeirismo”, resume Philippe Leão. Logo, os jovens, ao irem ao cinema, entrarão em contato com sucessos de bilheteria predominantemente americanos – como a franquia Marvel, utilizada como exemplo pelo próprio crítico – e quando recorrem a conteúdos nacionais, entrarão em contato com a releitura brasileira feita dos filmes do exterior. No fim, a receita cinematográfica sempre se volta para uma mesma base: o estrangeiro.

Com a falta de renda, incentivo e especialmente de público, o cinema brasileiro recorre a gêneros mais baratos tais como a comédia ou o drama. Ao se voltar especialmente para a comédia, a perda de público já se torna evidente uma vez que a preferência nacional é o gênero de aventura e, em seguida, a animação. Eles são preteridos por demandar alto valor de produção. E, para agravar, a indústria cinematográfica brasileira usa a célebre fórmula americana na produção de filmes, já que é um caminho garantido para obter público e renda. “É o cinema norte-americano produzido em território brasileiro. Estamos falando de filmes que trazem temas nacionais mas que buscam uma forma importada do estrangeiro”, complementa o professor de cinema.

A posição do Brasil nos serviços de streaming não melhora muito. Filmes nacionais não estão tão presentes nessas plataformas. “Existe uma falsa ideia de que os streamings chegaram para dar liberdade ao telespectador”, prossegue Philippe Leão. “Essas plataformas nada mais são do que uma empresa, portanto elas atuam para atender a uma demanda que elas mesmas constroem.” 

O estrangeirismo existente na cultura brasileira apresenta uma série de prejuízos para a nação uma vez que práticas e hábitos tão comuns acabam sendo modificados. Ocorre, dessa maneira, uma invasão mental, por intermédio da cultura, que transforma o país refém hegemonicamente de um dado território. “Esse povo deixa de assistir sua própria cultura, seu próprio artista, deixa de ter mercado que, por sua vez, deixa de ter emprego e, por fim, deixa de ter um sentido de nação”, finaliza Philippe Leão. Esse processo se torna inevitável em um cenário de globalização, contudo é importante perceber o quanto uma determinada população se permite entregar a essa prática.

Inventando moda

A moda também não deixou de ser afetada pela influência estrangeira, que teve origem ainda no período colonial. A identidade cultural das vestimentas foi constituída a partir da imigração de diversos povos estrangeiros ao país. “A maioria das referências de moda vem do exterior porque ainda temos a síndrome do colonizador de absorver a cultura de países da Europa e dos Estados Unidos. A cultura do nosso país não é legitimada pela nossa própria sociedade porque a cultura, em parte, vem das periferias e de uma classe menos favorecida e assim, é fácil e frequentemente relacionada ao crime, à marginalidade”, acrescenta a stylist Janaina Souza. 

Um dos casos mais emblemáticos que influenciou o mundo da moda foi a popularização do jeans. A peça de roupa que saiu da França, passou por mineradores em São Francisco e chegou até os nossos armários na forma popularizada nos EUA. E a fama veio mesmo na década de 1950, quando o ator americano James Dean,  considerado um símbolo de rebeldia da juventude de sua época, passou a adotar a calça jeans como parte de seu figurino. Até então, as calças jeans eram usadas em sua maioria por operários, mas o ator não se importava em usar uma peça de “baixo escalão” e não fazia ideia de que a partir dos anos seguintes ela se tornaria uma das peças mais usadas em todo o mundo.

O brasileiro sabe que consome muitos produtos que não são nacionais, ou, se forem, são baseados em mercadorias estrangeiras. E há também a questão da diversidade regional, onde alguns locais do país têm mais dificuldade de acesso à bens importados e não possuem a capacidade de comprar vários produtos internacionais, passando a interpretá-los de maneira diferente. Um exemplo são as calças da marca multinacional Levi’s, muito conhecidas internacionalmente. 

No Brasil, além dos produtos originais, “made in USA”, existem as adaptações feitas por outras marcas nacionais, que sabem as necessidades de seu público-alvo. Assim, elas podem manter o modelo semelhante, porém, mudam o tecido e o corte, adaptando-os ao povo brasileiro e seus gostos. Logo, a leitura de um mesmo produto passa por diversas modificações, pois uma mesma cultura pode atingir as pessoas de forma diferente e cada um desenvolve suas próprias interpretações a respeito.

Com as camisetas não foi muito diferente. Em 1948, o candidato à presidência dos Estados Unidos Thomas Dewey lançou uma das primeiras camisetas da história como propaganda política, contribuindo também para a popularização da peça. Em 1951, o ator Marlon Brando participou do filme Um Bonde Chamado Desejo, baseado na peça do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams, no qual o personagem aparecia apenas de calça e camiseta, transformando a peça em uma vestimenta comum e desejada entre as pessoas.

Com o tempo, a influência estrangeira na moda foi sendo naturalizada pelos brasileiros, que muitas vezes demonstram interesse por tendências norte-americanas e europeias sem perceber. “Se por um lado não reconhecemos e não valorizamos a moda nacional, por outro lado absorvemos a moda estrangeira sem ao menos permitir conhecer o que é produzido no Brasil. As marcas nacionais acabam ficando restritas a apenas um grupo seleto de consumidores pois o custo desses produtos não é suportado pelo grande público”, afirma Janaina. 

Ritmo brasileiro?

A cultura norte-americana também tem grande influência na música brasileira – tanto nas músicas produzidas por artistas nacionais, quanto nas músicas mais ouvidas pelos brasileiros. Pedro Antunes, crítico musical e colunista da Folha e Splash UOL, comenta: “É gigantesca a influência de artistas gringos na música brasileira. Isso é bom e isso é ruim”. Segundo ele, o problema não se encontra na influência, mas no “copia e cola da música”. O crítico explica que grande parte desses beats, atualmente, se encaixam em uma “fórmula”, o que por um lado garante sucesso nos streamings, mas por outro, não traz nenhuma novidade. 

Outro aspecto que Antunes destaca é que precisamos entender que não existe uma música que seja pura e unicamente brasileira: “A música que a gente conhece como brasileira já é uma mistura de referências trazidas pelos portugueses e depois pelos escravos que foram arrancados de suas terras e colocados aqui para trabalhar. Foram trazidas por imigrantes, italianos e japoneses também. Então a música brasileira nunca foi uma coisa pura.” Se não existe algo que podemos chamar verdadeiramente de “música brasileira”, o que devemos valorizar? O crítico explica: “Valorizar a nossa própria cultura é valorizar o próprio músico, é valorizar quem faz a música: o artista.” O que falta é saber quem são os produtores e artistas nacionais. 

É bem comum que artistas nacionais e internacionais se unam para fazer parcerias, os famosos featurings, como a parceria de Lady Gaga com Pabllo Vittar, para um remix da música “Fun Tonight” do último álbum da cantora. Sobre esse tópico, Pedro diz que em situações como essa, o foco, ao contrário do que muitos imaginam, é o mercado nacional: “Não é a Lady Gaga que vai ser responsável por levar o Forró para o mundo. Tem alguma internacionalização mas isso não é pensado no mercado gringo (…) É mais pensado no mercado daqui do que no mercado de fora.”

O funk brasileiro

Desde o começo dos anos 1970, o funk se faz presente na cultura brasileira. Apesar de sua evolução, ainda é comum ouvir pessoas reduzindo-o a um gênero sem conteúdo e “vulgar”, enquanto rappers estadunidenses ganham cada vez mais reconhecimento, inclusive no Brasil, cantando letras semelhantes às dos funks. “É um longo caminho para sair dessa marginalização numa sociedade conservadora, machista e elitista, principalmente, que não quer ver o marginalizado ascendendo a grandes voos, roubando – pensa a elite – o que é dela”, comenta Pedro, relacionando ao que acontece na moda, como apontado por Janaína Souza.  “Nos Estados Unidos isso passou por um longo processo, desde o fim dos anos 70 e início dos anos 80, quando o Hip Hop começou a se tornar algo gigantesco. O rap tomou como assalto a música no final dos anos 90.” Ele ressalta, porém, que mesmo que seja um processo duradouro, o funk já ganhou muito espaço no mercado e tem capacidade de crescer muito mais, basta o mercado “encontrar no funk uma forma de ganhar mais dinheiro do que ele ganha hoje com artistas do pop ou do sertanejo”. 

Ainda sobre o espaço que o funk ocupa e seu potencial, Pedro cita o novo álbum de Luísa Sonza: “Se você pensar em uma artista como Luísa Sonza que, em números, é uma das maiores artistas que existem no Brasil hoje, e ouvir as músicas do álbum mais recente dela chamado ‘Doce 22’ (…) o funk está ali. Claro que é uma artista branca, loira, vinda do outro lado do país, não da periferia do Rio de Janeiro, mas é a linguagem do funk chegando também”.

E agora, o que fazer?

A relação do Brasil com a cultura estrangeira não pode ser descrita apenas como subordinação. Segundo o professor de história Fábio Serra, “se fosse subordinação plena, chegariam vários containers norte-americanos no Porto de Santos para distribuir apenas mercadorias norte-americanas”. Para o professor, existe uma leitura da cultura norte-americana, um diálogo de apropriação e transformação.

O que falta, para Serra, são as possibilidades de reflexão. O papel da escola é imprescindível para mostrar que a cultura brasileira é construída e reconstruída no diálogo com os diferentes. Também é importante garantir que todos tenham acesso aos elementos culturais e identitários do Brasil, por isso relembra a importância da ampliação de visitações a museus: “lá é onde o indivíduo se reconhece enquanto parte integrante da cultura, reconhece a importância dessa cultura na sua própria construção enquanto indivíduo e cidadão”.

Para o crítico de cinema e professor Philippe Leão, o problema deve ser resolvido na base, isto é: “Educação, é um valor pedagógico mesmo”. Leão explica que é necessário um trabalho nas escolas por meio da atualização do currículo escolar de Artes Visuais, sobretudo, para o ensino do Cinema, já que é a arte que “mais afeta os jovens nos dias de hoje” e que “mais diretamente, fará com que esse jovem tenha contato com sua cultura através de imagens”.

O crítico ainda concorda com Fábio Serra no que diz respeito à valorização dos museus, ou seja, da preservação da história brasileira. “Nenhum desses caminhos, nem o pedagógico, nem a ideia de preservação da nossa história, da nossa memória, estão sendo respeitados, vide o que aconteceu recentemente com a nossa Cinemateca” (em 29 de julho, um dos depósitos com parte da história do cinema brasileiro foi incendiado).

Já no cenário musical, o crítico e colunista Pedro Antunes opina sobre o caminho para a valorização da música nacional: “Mais do que valorizar a própria cultura, é saber, de fato, valorizar quem produz música e ouvir mais as músicas daqui” e chama atenção para a importância, “principalmente para os sudestinos”, de buscar entender o que acontece nas outras regiões do país.

Pedro faz uma observação crítica sobre a música brasileira ao explicar que não existe música pura e unicamente brasileira, pois, em suas palavras, esta seria a dos índios dizimados. A música atualmente conhecida como brasileira conta com referências trazidas por portugueses e escravos, “que foram arrancados de suas terras e colocados aqui para trabalhar”.

Sobre o reconhecimento do universo fashion nacional, a stylist Janaina Souza complementa: “A melhor maneira de valorizar a moda nacional seria apresentá-la ao grande público, e o papel do stylist é muito importante neste sentido, pois vestindo uma celebridade de grande relevância com marcas nacionais fará com que a marca seja vista por esse público (…) é uma questão de não deixar de representar ao consumidor o que é nosso, o que foi produzido baseado na cultura e no comportamento do nosso país”.